Que a Revolução Francesa colocou o mundo de cabeça pra baixo e nobre na guilhotina, é axiomático para qualquer ser pensante minimante informado dos acontecimentos históricos mundiais. Pois bem, para a conversa de hoje é necessário ter esse humilde fato histórico em mente. Inclusive, chamar a revolução francesa de humilde parece resumir em muito o evento. A pauta era simples, mais liberdade e igualdade para uma classe política emergente economicamente mas carente de capital político nos meios oficiais. A nobreza não quis escutar, cabeças rolaram. Sobrou pro rei, pra mulher do rei, pro filho do rei, pros amigos do rei, pro pessoal que tava fazendo a revolução, pro pessoal que escrevia sobre a revolução, pro pessoal que, bem da verdade, não estava nem aí pra revolução. Sobrou até pro padeiro que, ao cochichar com um camarada - "acho que isso não vai dar muito bom" - foi denunciado pelo comitê revolucionário e... a guilhotina funcionou.
Tudo isso em nome de uma palavrinha que, citando Jorge Furtado (citando mais ou menos, diga-se de passagem), ninguém sabe realmente o significado mas, no fundo, todo mundo tem uma mínima compreensão da mensagem. Falo da liberdade, é claro.
Tratados e mais tratados foram escritos para uma definição da liberdade e, arrisco dizer, o embate de toda a política ocidental é, nada mais nada menos, do que uma disputa de quem é que, realmente, detém o significado último de liberdade.
A digressão histórica para a frança do Século XIX é importante, pois a fundamentação teórica basilar dos que se proclamam hoje como os principais arauto da liberdade está lá. Falo dos liberais é claro. Liberais aqui no fenômeno brasileiro, não os "liberals" americanos. Política imperialista estadunidense fica pra outro post, companheiros.
A liberdade para os revolucionários franceses, claro, era uma liberdade econômica, juntamente com a igualdade política: aqui num sentido mais formal do que material, ou seja, os burgueses não queriam que critérios incontroláveis do ponto de vista humano, como nascimento, por exemplo, necessariamente influíssem no jogo político, pelo menos não de maneira direta. Necessário lembrar o lema revolucionário, "liberdade, igualdade e fraternidade" para ter uma ideia do objetivo detrás de tantas cabeças rolando.
O livre comércio já era aventado pelo iluminista escocês Adam Smith, e sua doutrina quanto ao progresso social estar ligado com as riquezas individuais (capital privado) foram uma importante força motriz para uma burguesia tímida e cansada de só levar na bunda pela nobreza mais "descansada". Claro que na revolução de 1789, os iluministas franceses e sua estruturação teórica de organização estatal e democracia fundamentaram mais potencialmente as baionetas revolucionárias, até então carentes de ideologia.
Difícil julgar os burgueses do século XIX. A mordomia da nobreza, ao final, era bancada por uma camada da população que sequer tinha oportunidade de dar sua opinião sobre os rumos da pólis. Além disso, sequer tinham direito de argumentação para otimizar o próprio ramo, isto é, o comércio. Ainda, eram afogados por um mar de instabilidade social e desmandos causados por meia dúzia de soberanos que tinham uma legitimidade social questionável, para dizer o mínimo.
Bem da verdade o iluminismo construiu a base teórica revolucionária. E a base teórica revolucionária, fim ao cabo, se resumia em uma única palavra: liberdade.
Resumo da ópera: burgueses matam meio mundo, difundem o comércio e o capitalismo pela Europa e se mantém como classe política hegemônica que passa a ditar os rumos políticos de suas nações. Viva a liberdade. Liberdade política, liberdade econômica, liberdade de pensamento. O mundo, depois da revolução francesa surpreendeu até o sacerdócio. O paraíso na terra tinha enfim sido conquistado.
Bom, não era o que pensava Carlinhos Massa, vulgo Karl Marx.
No enfrentamento da ideologia burguesa, o marxismo é interpretado, erroneamente e infelizmente, como contrário à liberdade. Afinal de contas, ser contra os senhores da liberdade pode não pegar muito bem quando outras pessoas tentam interpretar que tipo de visão de mundo se quer passar. Dizendo de outra forma, se o marxismo foi um contraponto à burguesia, soberana dos libertos, o que raios o marxismo quer dizer? O que raios o marxismo traz de novidade que não tenha sido trazido pelos iluministas? Ora, esses loucos só podem estar querendo algum tipo de restrição, não é mesmo?
É uma guerra narrativa interessante e, confesso, é possível compreender o estranhamento de muitos com a doutrina marxista, principalmente se analisarmos essa ótica de contraponto entre teoria marxista x teoria de liberdade até então hegemônica.
O que a direita entende (e entende assim pois foi também desinformada, e muito, por um aparelho midiático alinhado aos interesses burgueses, hoje representados pelos Estados Unidos e a doutrina neoliberal) de Marx do ponto de vista de doutrina autoritária, pouco tem a ver com os escritos do alemão barbudinho. Diga-se de passagem, Karl Marx nunca fez uma análise teórica da democracia e das liberdades em si, passando à uma análise muito mais voltada para o âmbito econômico. Entretanto, é justamente na análise econômica que a verdadeira crítica marxista surge, isso é: a exploração da classe trabalhadora, a opressão burguesa. Dizendo de outro modo: a ditadura dos livres.
O que o marxismo vislumbra e aponta, portanto, é uma ausência profunda de liberdade que acomete a classe trabalhadora, uma ausência que é compartilhada por aqueles que não detém os meios necessários para serem livres. O marxismo vê uma divisão no direito de liberdade, uma divisão perversa em que a camada de base, assim como os revolucionários da França de 1789, não possuí condições de paridade em garantias e direitos com a burguesia, a nova nobreza, o topo da pirâmide.
A esquerda contemporânea, mais ainda, através de influências de ótica marxista, passam a analisar outras formas de opressão, isto é, outros grupos sociais que estão carentes de liberdade. Aí surgem as pautas identitárias, as pautas raciais, as pautas feministas, as pautas "body positive", as pautas indígenas e inúmeras outras.
Nenhum outro grupo político, nenhuma outra ala ideológica abraça mais discursos de liberdades como as esquerdas nesse mundão afora. Ironicamente, são os liberais, antigos burgueses, que se alinham com vertentes mais conservadoras e atacam, justamente, os oprimidos e desgarrados de um sistema que, outrora, eles mesmos ajudaram a combater (falo de um sistema de opressão em si, e não do sistema capitalista necessariamente). É o modelo histórico-dialético na sua forma mais sublime.
Claro que a imagem de marxismo = autoritarismo não foi beneficiada por aqueles regimes totalitários que se diziam comunistas. Stalin na União Soviética pouco se preocupou com liberdades e estava mais interessado em ser uma potência hegemônica. Na China, Mao também não deixou um legado democrático muito promissor. Entretanto, o modelo comunista chinês têm peculiaridades confucionistas que eu gostaria de abordar em outros textos.
A conclusão é que a narrativa sobre a liberdade atinge a política atual e ainda vai se propagar para infindáveis discussões futuras. Cabe à esquerda se reposicionar de forma clara em relação a esse conceito de forma mais substancial, abandonando qualquer tipo de saudosismos autoritários que mais tendem a se alinhar com discursos e simbologia fascistas do que propriamente marxistas.
Marxismo é liberdade. O problema é que a própria esquerda esquece disso.
Portanto lembremos, camaradas!
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